Os compadres  (artigo de José Antunes de Sousa, 106)

Espaço Universidade Os compadres (artigo de José Antunes de Sousa, 106)

ESPAÇO UNIVERSIDADE09.09.202110:31

 Da mesma forma que nada há mais eficaz para armar uma rixa do que uma herança, por mais pequena que seja, assim também nada parece mais seguro para a reconciliação de amigos desavindos do que o comum sentimento de culpa.
 

Como já intuíram os meus fiéis leitores, vem isto a propósito do mais recente e espantoso desenlace do qual Eça de Queiroz não teria hesitado em apropriar-se: os senhores Costa e Vieira abraçados  a carpir erros e excessos passados numa discreta vivenda em Felgueiras. Aliás, desde os tempos do Zé do Telhado, que aquela zona oferece oportunos esconderijos.
 

Mas vamos à teimosia dos factos: era uma vez dois amigos, e que assim se mantiveram enquanto a sua ligação se expressou de modo assimétrico: um, o senhor Costa, o todo poderoso presidente absoluto do Futebol Clube do Porto, o outro, o senhor Vieira, um desconhecido empresário de pneus, com discreta presença no Alverca, em cuja condição transferiu craques para o Porto, com paragem no apeadeiro do Salgueiros. Um prodigalizava amizade do alto do seu trono, enquanto o outro a mendigava, como neófito nos negócios da bola. A esta amizade equilibrava-a a assimetria.
 

Mas tudo se complicou quando entrou em campo a simetria: passaram a ser rivais - e lá se foi a antiga amizade. Sim, só há conflito entre protagonistas relevantes: ninguém luta contra uma criança desvalida!
 

Mas neste caso há mais um sério interveniente que alimentou a peleja incendiária durante estes anos todos: seu nome - impunidade.

Aquela sensação narcísica de se ser dono de um território à margem da lei, um estado dentro e acima do Estado, essa sensação de se estar sob a umbela protectora de uma lei acomodatícia, desatou-lhes o garrote e libertou-os do açaime de qualquer poder coercitivo: pedras, granadas, emboscadas em viadutos - valia tudo!
 

Curioso: um ano em que o FCP fez do estádio da Luz o salão de festas para celebrar a vitória em mais um campeonato, o senhor Vieira mandou desligar a luz e ligar a rega. Há uns meses, o senhor Costa, numa ousada e arbitrária gentileza do agora seu amigo, gravou em camarote do estádio da Luz, um episódio televisivo recordando o feito portista: maior prova de amizade é difícil sequer imaginar.
 

Este caso, para nos mantermos no campo da geometria, é circular: estamos de regresso ao ponto de partida: o que é que os fez agora cair nos braços um do outro? Isto: o fim da impunidade. A nova e imprevista sensação de vulnerabilidade perante a lei geral teve o condão de unir aqueles que, afinal, sempre estiveram unidos pelos excessos e desmandos - e esse sentimento de culpa vem agora uni-los, em comovente drama de irrenunciável cumplicidade.
 

A impunidade abriu e cavou a trincheira, o dedo em riste do procurador fez calar as trombetas e enterrar o machado de guerra.

Há sempre sangue no armistício. A paz sob a ameaça das armas é pacificação - que a paz gera-se no coração.

Esta serôdia amizade pode fazer baixar o ruído, mas está longe de trazer a paz ao futebol.

José Antunes de Sousa
Doutor em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa