O visível e o invisível no karaté (artigo de Vítor Rosa, 102)

Espaço Universidade O visível e o invisível no karaté (artigo de Vítor Rosa, 102)

ESPAÇO UNIVERSIDADE10.05.202001:24

O local onde se pratica karaté chama-se “dojo” (termo japonês). As decorações de estilo oriental e os retratos dos mestres (“sensei”) fazem do dojo um lugar onde se mistura exotismo e solenidade, e no qual um certo número de rituais ritmam a passagem dos praticantes. É o lugar da “Via”.

O karaté é uma arte marcial, como se diz vulgarmente. Para muitos, é uma arte e para a compreender é preciso penetrar na cultura nipónica. É uma prática que oferece técnicas corporais, mentais e espirituais. Muitos karatecas recusam-se a considerar a sua prática de eleição como um desporto, mesmo se a forma de a ensinar se identifica exatamente com ele. As artes marciais japonesas, do qual o karaté faz parte, saíram da cultura Samurai, que marca o tempo da feudalidade japonesa que se estende dos séculos XII ao XIX. Na prática do karaté encontramos um funcionamento muito hierarquizado, com iniciações, ritos, rituais e mitos. As graduações fazem essa distinção, marcando um caminho de progressão.

Para compreender a especificidade da ritualidade do karaté, não se pode “economizar” na palavra do treinador. É ele que conhece os termos técnicos japoneses, que os traduz em português (no nosso caso), que assegura o respeito pelo local de treino, que dá um sentido à história das artes marciais e, consequentemente, à cultura nipónica. O karaté é muitas vezes mistificado. A magia que se opera depende muito dos treinadores, que não têm todos o mesmo carisma. É preciso assistir aos treinos dos mestres japoneses para se sentir a força dos ritos, dos signos e dos símbolos. Uma espécie de “rito religioso” se encontra na prática dos katas (formas que representam a “memória” do karaté), que começam com uma saudação. Atualmente, retém-se o aspeto visível das técnicas do corpo e a eficácia dos combates. Esquece-se que as técnicas provêm de Okinawa, da China e, antes disso, da Índia, que se estudavam e eram transmitidas nos mosteiros. O aspeto invisível das técnicas, que nos remetem para a interioridade do ser, é preponderante e leva aos estados místicos. Os treinos de karaté são duros. E é na capacidade individual de suportar a dor que se constrói a relação com o corpo.
 

O karaté ficou mais pobre, com o recente falecimento do mestre Raul Cerveira, com 76 anos. Foi um dos fundadores da Federação Nacional de Karaté Portugal. Tive o privilégio de o conhecer, de o entrevistar e de treinar com ele algumas vezes. Endereço as minhas sentidas condolências aos familiares e amigos.

Vítor Rosa

Sociólogo, Doutor em Educação Física e Desporto, Ramo Didática. Investigador Integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares de Educação e Desenvolvimento (CeiED), da Universidade Lusófona de Lisboa