O futebol em plano inclinado? (artigo de Manuel Sérgio, 338)

Espaço Universidade O futebol em plano inclinado? (artigo de Manuel Sérgio, 338)

ESPAÇO UNIVERSIDADE09.05.202019:20

Desde o dealbar do século XXI que  o mundo tem sido sacudido por sucessivas crises: a crise ambiental e climática; a onda de terrorismo que pretende submergir “em nome de Deus”(?) os diversos povos, nações e culturas; os mega-incêndios de sexta geração, que reduziram a cinzas grande parte do nosso País; a crise económico-financeira, que nos deixou nas mãos férreas da célebre “troika”, que aqui esteve ao serviço de uma exploração e manipulação, por todos nós (os mais pobres) já suficientemente conhecidas; e agora a Covid-19. Há momentos na vida em que a vontade das pessoas, por mais firme que se apresente, não consegue impor-se às situações adversas. O treinador Abel Ferreira, com um manifesto espírito de bem servir, já disse publicamente: “Os organismos que tutelam a sociedade, e de modo particular também os do desporto, têm agora a oportunidade única de fazer diferente, de fazer a diferença, de fazer muito, de fazer melhor”.  Segundo o jornal espanhol  Expansión (2020/5/3), com base nas estimativas do jornal Two Circles, a indústria do desporto registará, no ano em curso, perdas de 57 mil milhões de euros, por força da Covid-19. Como não sou médico, nem biólogo, não sei quais as “causas das causas” desta pandemia. Um vírus? Uma bactéria?... Eu até já ouvi  o Sr. Trump sugerir a hipótese de esconder-se na China o inventor da Covid-19! No JL(de 9 a 22/10/2019) o filósofo Viriato Soromenho-Marques escreveu uma  prosa do seguinte teor: “A verdade é que a moderna civilização tecnociemtífica, apetrechada com um motor turbo chamado economia de mercado, e aditivada com o chumbo da ideologia neoliberal, já nos levou à derrota colectiva, no que toca à possibilidade de uma harmoniosa habitação humana da Terra. A tecnosfera entrou em colisão com os ecossistemas, danificando de modo irreversível os limites ecológicos de suporte da exuberância e complexidade, tanto da biosfera, como da própria noosfera”. Ora, “se a tecnosfera entrou em colisão com os ecossistemas”, duma natureza desregulada não me surpreende nasçam microorganismos adversos ao ser humano e à humanidade em geral…
 

É verdade que o adulto dos nossos dias vive dependente da televisão, da “caixa que mudou o mundo”. Volta do emprego e já traz na mente os programas televisivos que não dispensa: os noticiários, as telenovelas, os programas musicais, os programas desportivos, os concursos, etc. Mas há uma exceção: o fenómeno cultural de maior magia, no mundo contemporâneo, o futebol!. De facto, uma equipa de futebol, sem o seu 12º jogador, sem a  vocação iconoclasta, sem a virulência exuberante, sem a truculência polémica, sem a  religiosidade das suas claques, perde um importante apoio psicológico. Por isso, o adepto “doente”, como eu já fui,  seja ou não seja televisionado, nunca perde um jogo da sua equipa. E assim se mantém uma elevada temperatura emocional, ao redor do relvado. Um ponto ainda a relevar: o adepto é-o em tempo integral! E, se preciso for, acompanha as equipas do seu clube, que o representam noutras modalidades desportivas, com o mesmo ânimo impulsivo e o mesmo tom irreverente dos jogos de futebol. Enfim, sem entrar em campo, o adepto (ou o “torcedor”) julga ter parte ativa nos bons resultados do seu clube – os maus resultados atribuem-nos, quase sempre, aos treinadores e, de quando em vez, aos jogadores. Mas, porque é um “doente”, mesmo em tom ameno e coloquial, é um sofredor. Bem vistas as coisas: é um masoquista! Pois não é verdade que gozaria muito mais num cinema, ou num bailarico, ou a ler um apetitoso romance do Eça ou do Machado de Assis, ou numa conversa “charmosa” com a pessoa que se ama? Só que ele ama também enternecidamente o seu clube e uma vitória das suas “cores”, mormente em determinados jogos, invade-o de um tal prazer  que não há, para ele, outra satisfação maior.  Entre os especialistas do treino, é costume dizer-se: “joga-se como se treina”. Mas por que não se diz: “joga-se como se vive”? Recordo palavras do Eduardo Lourenço: “A cultura somos nós próprios, a cultura é o homem em si mesmo, a cultura é a consciência que nós temos, cada um de nós  tem do mundo que o rodeia”. E não é o futebol “o fenómeno cultural de maior magia, no mundo contemporâneo”? Por isso, só o futebol pôde fazer de um “favelado” sentir-se o homem mais rico do mundo, após a vitória do Flamengo, na Libertadores…
 

Confesso “in limine” o meu espanto pelas restrições impostas pela pandemia do coronavírus, na economia e nas finanças dos portugueses. Mesmo sob a chancela do estado de calamidade, no lugar do estado de emergência, o regresso às aulas presenciais limitar-se-á aos alunos do 11º e do 12º anos; as lojas de rua com menos de 200 m2 e as com menos de 400 m2 e a restauração ensaiam os primeiros passos tímidos, por entre a impaciência e a intemperança verbal de alguns polemistas de rua; a esmagadora maioria das pessoas sobrevive, no nosso país, com salários tão baixos, que nem o compromisso militante  de muitas pessoas (o diletantismo, nestas circunstâncias, é intolerável) os consegue afastar da pobreza e da miséria; por fim, o vice-governador do Banco de Portugal, Dr. Máximo dos Santos, não fica inativo e, rebelde a todo o conformismo , adianta: “Vamos ter bancos muito mais fracos” e “não vale a pena pensar que a banca não será atingida pela crise”. Entretanto, o Banco Central Europeu (BCE) só “cobre” o défice português até 8,4% . A retoma da economia é sinal de um recomeço de mais euros, no Produto Interno Bruto (PIB)… que, no ano de 2020, já está, ou em agonia, ou ferido de morte! Por isso, o Expresso interroga e interroga-se: E a economia está preparada para reabrir? Entretanto, a Dra. Manuela Ferreira Leite, nesta hora em que as suas palavras adquirem uma nitidez vibrante, assinala que “muitos países do mundo, toda a Europa e portanto também o nosso país mergulharão numa profunda recessão”. O filósofo Miguel Real escreveu, no seu livro Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa: “Não existe uma essência identitária de Portugal, uma noção metafísica sintetizadora da existência de Portugal e identificadora da sua história, singularizando-o monumental e memoravelmente entre a totalidade das nações europeias” (p. 23). Como diria Alberto Ferreira, no seu Diário de Édipo: “É urgente a metamorfose”…


O ser humano é o produto do que faz. E o Dr. Fernando Gomes, de currículo ímpar na história do futebol português, como presidente da FPF, e pessoa exemplarmente devotada às funções que exerce, já deixou um sério aviso: “O futuro do futebol português, lamento dizê-lo, não está garantido”. E anunciou o que há a fazer, para que o nosso futebol possa singrar na senda do progresso: envidar esforços ao desenvolvimento da formação; “construir provas desportivamente rentáveis, socialmente relevantes e economicamente viáveis”; a venda dos direitos televisivos, nomeadamente ao estrangeiro, como especial fonte de receita; e tudo isto, num clima de serena, mas firme, persistência, resiliência, solidariedade. Ou seja, que tudo se faça, com ciência e consciência! E eu até acrescentaria ainda: e uma ânsia inapagável de bem servir o futebol - o futebol, querido companheiro dos meus tempos de criança e de rapaz e até de adulto ainda jovem! Evocá-lo  é lembrar os primeiros ídolos da minha vida: a inteligência do Mário Coluna e do Mariano Amaro e do José Travassos e do Hernâni (F.C.Porto), o instinto goleador do possante Fernando Peyroteo e do elegante José Águas e do incomparável  Matateu. E a “souplesse” do Rogério Lantres de Carvalho? E a genialidade do Manuel Vasques (de características tão semelhantes às do António Oliveira do F.C.Porto)? E as “Torres de Belém”? E aquela linha avançada: José Augusto, Eusébio, Águas (Torres) Coluna e Simões, que me surpreendia e maravilhava? E aquelas duas equipas da Académica: uma, comandada no campo pelo “Rochinha” e no balneário pelo Cândido de Oliveira; a outra, onde pontificavam os irmãos Campos, o Manuel António, o Gervásio, o Fernando Peres (de quem eu fui o explicador de Francês, quando ele preparava os exames do segundo ciclo liceal)? Esta equipa, que era treinada pelo Francisco Andrade, proporcionou a Portugal inteiro a maior manifestação anti-salazarista de que há memória! E ainda desta equipa o minúsculo e arguto e vivaz Mário Campos que escolhia o Restelo para exibir toda a magia do seu futebol e provocar-me, por isso, uma “azia” terrível? Meu querido futebol! Em plano inclinado? Com o Dr. Fernando Gomes e o engenheiro Fernando Santos e o José Peyroteo Couceiro, não acredito…
 

Quando proclamamos “Eu sei!”, esta certeza remete para uma “forma de viver” em que as suposições fundamentadas radicam noutras não fundamentadas, configurando-se, assim, este saber num sistema. E leio agora o Wittgenstein Da Certeza: “o nosso saber forma um sistema enorme. E só no interior deste sistema é que o singular tem o valor que lhe damos”. Isto, para entendermos melhor o Cardeal D. José Tolentino Mendonça, meu querido Amigo e meu Mestre, no Expresso, de 2020/5/9: “O estado de exceção que estamos a viver faz-nos ansiar pela normalidade, absolutamente necessária para o relançamento da vida. Mas, de que falamos, quando falamos de normalidade? De um modo apressado, seríamos tentados a identificá-la com o regresso exato à vida que tínhamos anteriormente (…). Essa é uma ideia que nos devolve segurança: pensar que estes tempos estranhos assim como chegaram vão partir, como se de uma anomalia de circunstância se tratassem, e que nós e o mundo nos reencontraremos na mesma posição de há uns meses. Em grande medida será assim. Mas também é verdade que não seria normal que tudo fosse exatamente como dantes. Mesmo tornando ao quadro habitual da nossa vida, é importante que nos perguntemos: “o que é que no mundo e em nós se modificou” e “o que é que aprendemos com isso”. Não desperdicemos portanto a oportunidade que representa, pelo menos, fazer-se perguntas”. E há tantas perguntas a fazer. Principalmente, depois de ler o Jorge Valdano, n’A Bola, também de 2020/5/9: “Convém esclarecer que não é por capricho dos futebolistas que se voltará a competir. Sejamos claros: quem tem pressa é a indústria, não o jogo. O jogo foi inventado, para nos divertirmos, a indústria sustenta muita gente”… 

Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto