Espaço Universidade Viagens do corpo (I) (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 25)

ESPAÇO UNIVERSIDADE03.05.202016:16

Os japoneses possuem um provérbio, ‘on kochi shin’, que se poderá traduzir por "desenvolver novas ideias baseadas no estudo do passado." Este passado tem de ser revisitado como uma ponte para o futuro, ponte essa que passa pelo presente. Não se trata de prevermos o futuro mas de precavermos esse futuro.

E no passado, quer se tenha descido das árvores para a planície, como defende a teoria da savana, quer se tenha vivido num ambiente mais ou menos pantanoso, como defende a teoria do símio aquático, certo é que a evolução nos fez chegar ao bipedismo e a uma postura erecta.

Ao longo da filogénese da espécie humana talvez tenham sido estas as mudanças, que duraram milhões de anos, mais significativas.

A perda da oponibilidade do polegar no pé implicou a ausência da capacidade de preensão nos membros inferiores, o tamanho dos dedos reduziu-se, sendo o dedo grande particularmente robusto e participando, tal como os restantes, na função de sustentação.

Podemos constatar hoje que o pé humano tem um arco longitudinal idêntico ao dos outros grandes símios vivos, mas é único quanto ao arco transversal (na zona distal do metatarso, a mais próxima da ligação com as falanges), devido aos ligamentos e aos ossos do tarso que suportam antigraviticamente o peso corpo. É este arco transversal que possibilita que o homem possa criar o grau de tensão muscular adequado e necessário ao desequilíbrio que lhe permite transferir o peso do corpo para a frente deslocando um dos pés, e a seguir o outro, mudando a sua base de sustentação e originando a marcha. Esta é a grande vantagem do homem em relação aos outros primatas. Não é por acaso que todos os movimentos de mudança de direcção usando o trem inferior no Karate-do (pelo menos no estilo Goju-Ryu de Okinawa) se fazem sobre este arco: possibilitam um maior equilíbrio, uma maior estabilidade, tal como uma maior pressão dos dedos do pé no chão durante a mudança de lugar do calcanhar.

Com o bipedismo verificou-se o encurtamento e o fortalecimento dos ossos do metatarso, sendo os exteriores mais robustos (justificando como o peso do corpo na marcha passa do calcanhar para o bordo externo do pé, seguidamente para o terço ântero-interior e, por fim, para o dedo grande do mesmo).

Torna-se fácil dar conta da diferença de tamanho no homem entre os membros superiores e os membros inferiores, sendo estes mais longos. Paleoantropólogos e biólogos dir-nos-ão se foram as pernas que aumentaram ou os braços que diminuíram. Sem dúvidas o facto de o bipedismo ter libertado os membros superiores para transportar os mais novos, para melhor conseguir alimentos, para reagir mais rapidamente a potenciais perigos, para fabrico e utilização de instrumentos e para mais eficazmente enfrentar mudanças ambientais... e ter possibilitado o cruzamento (pronação), e não só o paralelismo (supinação), do par formado pelo rádio e cúbito no antebraço.

A pélvis foi-se alargando e perdendo altura, proporcionando um melhor rendimento aos glúteos que activam as pernas, permitindo uma melhor transição do centro de gravidade do corpo de modo a que a vertical que passa pelo mesmo caísse sempre dentro da sua base de sustentação.

Enquanto no chimpanzé os fémures são paralelos, no caso do ‘Autralopithecus afarensis’ (extinto aproximadamente há cerca de 2.9 milhões de anos) estes já se tornam oblíquos e orientados para dentro, evoluindo para que o crânio e as articulações de ambas as tíbias se conjuguem verticalmente. O peso do corpo passou a poder ser assim transferido directamente para a frente, evitando o impulso que os chimpanzés dão de uma perna para a outra quando se deslocam.

A caixa torácica hominídea foi sofrendo um achatamento no plano frontal, tal como uma maior amplitude lateral. A omoplata deixou de se situar lateralmente e evoluiu para a zona posterior do tórax aproximando-se da coluna vertebral, a clavícula alongou-se e robusteceu-se e o esterno tornou-se maior e mais forte.

As colunas cervical e lombar foram-se reduzindo, passando a apresentar a coluna vertebral quatro curvaturas flexíveis que permitiram a estabilização vertical.

O crânio reposicionou-se, modificando-se a posição do ‘foramen magnum’, que se situa agora sob o crânio, deixando a coluna vertebral de se alinhar obliquamente com o mesmo e apoiando-se aquele nesta.

Quanto às modificações cranianas basta-nos referir o aumento da capacidade do crânio pois há uma diferença de tamanho do cérebro entre o ‘Autralopithecus afarensis’ (400-500 cm³) e o ‘Homo sapiens’ (1.200-1.400 cm³) assim como a diminuição do prognatismo e consequentes modificações odontológicas.

Um último apontamento em relação à estatura: se o ‘Homo habilis’ (2.4 a 1.6 milhões de anos) tinha uma pequena estatura, cerca de 1.52 m, a altura média de um ser humano europeu situa-se actualmente entre os 1.73 m e os 1.78m.

Para se perceber perfeitamente a nossa filogénese seria bom não se esquecer que a evolução humana, assim como a de qualquer outro ser vivo, foi um processo complexo e não um processo linear…

Mas enquanto ao longo da mesma o corpo hominídeo se foi modificando como resultado de uma evolução condicionada pela natureza, adaptando-se, actualmente as modificações do e no corpo humano resultam de uma resposta ao ambiente criado pela sua própria espécie.

(continua)

Bibliografia:

Cregan-Reid, Vybarr (2019). “Alteração primata ”. Lisboa: Clube do Autor.

Fonseca, Vítor da (1989). “Desenvolvimento Humano: da filogénese à ontogénese da motricidade”. Lisboa: Editorial Notícias.

Vicente, Luís (2014). “Origens e Evolução da Linhagem Humana” in Levy, A., Carrapiço, F., Abreu, H. e Pina, M. “Homem: Origem e Evolução”, pp. 127-146. Lisboa: Glaciar.

Armando Neves dos Inocentes é Mestre em Gestão da Formação Desportiva, licenciado em Ensino de Educação Física, cinto negro 5º dan de Karate-do e treinador de Grau IV.