Espaço Universidade O Clube que dois homens recriaram (artigo de Manuel Sérgio, 346)
Acabei de ler um livro, de inapagável ressonância, nomeadamente na década de 40, de Gilberto Freyre, O Mundo que o português criou. E logo me veio à ideia, findo o jogo Porto (2) – Sporting (0), escrever um artigo assim titulado: “O Clube que dois homens recriaram”. É o artigo de um velho? É, de facto. Tenho 87 anos de idade. Mas aprender o que eu aprendi, principalmente com José Maria Pedroto, e também com Jorge Nuno Pinto da Costa – agradeço a Deus a minha velhice e o convívio que me proporcionou com estes dois homens de faculdades excecionais, no domínio da liderança e no conhecimento do futebol e… com invulgares aptidões criadoras no exercício das suas funções! Junto dos técnicos-adjuntos (recordo o António Morais, o João Mota, o Hernâni Gonçalves e o José Neto) e dos jogadores de José Maria Pedroto, o prestígio das ideias do seu treinador não se apagou e vai continuando, aqui e além discreto, mas sempre decisivo, em tudo o que faziam e fazem no futebol.
Desde muito cedo, me surpreendeu o inquieto anseio de Pedroto de mais saber e as suas sínteses que resumiam alguns anos já de árdua e profícua prática. Não me é possível relatar “ipsis verbis” o conteúdo das nossas conversas, numa atmosfera desanuviada, num ambiente simpático, mas julgo poder lembrar alguns temas que lhe apresentei e ele manifestou uma atenção respeitosa: “a cultura do clube, tentando assim desenvolver o espírito de união, o espírito de grupo, entre todos os “agentes do futebol” de um mesmo clube; as ciências e as ciências humanas; um corte epistemológico: a ciência da motricidade humana, onde o futebol encontra o seu radical fundante; o desporto como ciência humana; o treino desportivo; não há jogos, há pessoas que jogam; promover a interdisciplinaridade, já que, sem pesquisa interdisciplinar, não há possibilidades de investigação nas ciências humanas; a Evolução em Pierre Teilhard de Chardin”. Ele tinha problemas mais instantes a preocupá-lo. E adiantava, sem cortar o rumo ao diálogo: “Com o Jorge Nuno, ainda farei do Porto, um clube campeão, a nível nacional e internacional”. E fez! E com Jorge Nuno! Eles sentiam e pensavam como se fossem dois numa pessoa só. Mas nem o seu acendrado portismo o impedia de escutar-me com, para mim, gratificante atenção. E de renovar o convite para nova conversa…
Como sustenta Rizieri Frondizi, “ os valores não existem por si mesmos, pelo menos neste mundo; precisam de um depositário, no qual descansar” (Qué son los valores? Introducción a la axiologia, Fondo de Cultura Económica, México, 1990, p.15). O coro da Antígona de Sófocles cantava: “Há no mundo muitas coisas assombrosas / mas nada há de mais assombroso do que o homem”. Embora a crise atual da imagem universal do ser humano que o historicismo bem patenteia - é ele, o ser humano, o grande marco, antes da Cristogénese, da Evolução. E quando na História surgem cidadãos empenhados na resolução dos problemas do seu tempo e até na corporização daqueles valores que definem a humanidade – não se estranhe a “escola de admiração” em torno dessas figuras, claramente inspiradoras, tão conhecedoras do passado como orientadoras do futuro. José Maria Pedroto, no futebol, foi uma destas figuras, uma figura inesquecível, inaugural, única. Porque faleceu numa idade em que ainda muito tinha para dar-nos, as suas teorias andam por aí incompletas e dispersas, sem ter-se em conta o meio em que historicamente se situaram e (perdoem-me, se exagero) porque o Pedroto, no futebol, já estava 50 anos adiantado ao tempo em que viveu. Na década de 70, em que eu, contra ventos e marés, começava a estudar epistemologia, apoiado no saber de Armando de Castro, professor ilustre da Universidade do Porto, e começava também a visitar o futebol com os olhares interpretativos de pensadores como Bachelard e Althusser, Foucault e Canguilhem, Popper e Kuhn e, por fim, Merleau-Ponty, Piaget e Feyerabend (autores que o fisiologismo daqueles anos idos não permitiam que se estudassem) José Maria Pedroto teve a bondade, numa das nossas habituais conversas, de sublinhar: “Sabe por que gosto de falar consigo? Porque você diz coisas que são novas, no futebol”. Cheguei ao ocaso da vida, isto é, propendo para a inércia absoluta. Por isso, antes que a inércia me tome, o meu convívio com Pedroto não o escondo, nem devo escondê-lo. Os Profs. José Neto e João Mota (“in illo tempore”, depois de Jorge Nuno, tão próximos de Pedroto) talvez tenham aqui uma palavra a dizer. E até o Dr. José Lourenço Pinto, atual Presidente da Assembleia Geral do F.C.Porto, que eu pessoalmente conheci, através de José Maria Pedroto. E, hoje, é um querido Amigo que muito admiro…
Não sei se, do coro unânime de elogios celebrativos, que têm vindo a público, sobre as melhores recordações guardadas do convívio com Pedroto, serão muitas as pessoas que podem testemunhar, melhor do que eu (excetuando Jorge Nuno Pinto da Costa, um ou outro dos seus adjuntos e jogadores, familiares…) a curiosidade intelectual, o rigor, a sabedoria que dele irradiava, quando falava de futebol. Quando eu dava particular realce à minha tese, inédita entre nós e naqueles anos idos: o futebol só como ciência hermenêutico-humana deverá estudar-se e praticar-se – ele continuava, esboçando um sorriso de assentimento: “portanto, antes do jogador, há o homem e é o homem-jogador que deve treinar-se”. E eu atalhava: “Se não for assim, nem encontro fundamentação científica, para o treino”. Parece-me importante lembrar, não tanto o que eu adiantei, em língua portuguesa, mas a rápida compreensão que José Maria Pedroto manifestava pelas minhas “quase novidades”. Ainda se ouvia, então, em Portugal, o grito de Berdiaeff: “La liberte n’est pás un droit, c’est un devoir”. E, porque com ele a diferença era uma exigência de qualidade, criou com o treinador Fernando Vaz e o Dr. Lourenço Pinto um novo sindicato e sugeriu, quando teve consciência da doença implacável que o minava, o nome do Dr. Artur Jorge, para seu substituto, como treinador principal do futebol portista. O Artur Jorge que um dia, na Direção-Geral dos Desportos, me procurou, para confidenciar-me que começara a ler o Eugénio de Andrade e a Sophia! Um treinador intelectual e poeta! “O Artur Jorge? (diz-me, repetidas vezes, o Prof. José Neto) foi o treinador ideal para continuar a mensagem do Mestre Pedroto”. O Sol desdobrava a sua asa de oiro sobre a cidade do Porto e descobri duas lágrimas a correr pela face do José Neto. Justificou-se: “Para um portista, é impossível falar de Pinto da Costa e de Pedroto e até do Artur Jorge, sem uma enorme emoção”. E, com as lágrimas a estrelar e a fulgir ainda acrescentou: “E não devo esquecer ainda o seu amigo José Mourinho e o André Villas-Boas”…
Entre os que não deixaram empalidecer, definhar, vacilar o sonho inicial de José Maria Pedroto e Jorge Nuno Pinto da Costa, como pretender apoucar os nomes dos que fizeram a epopeia de Basileia e de Viena? Aí deixo, respeitosamente alguns nomes. De Basileia: depois do treinador António Morais, Zé Beto; João Pinto, Lima Pereira, Eurico e Eduardo Luís; Jaime Magalhães, Frasco, Jaime Pacheco, Sousa; Gomes e Vermelhinho. E, em Viena, depois de Artur Jorge (o “Rei Artur”),Teles Roxo, Otávio Machado, Pôncio Monteiro, Ribeiro de Magalhães, José Neto, Mlynarczyc; João Pinto, Eduardo Luís, Celso e Inácio; Jaime Magalhães, Madjer, André, Sousa, Quim e Futre. Gomes (o “bibota de ouro”), por lesão, não jogou. Esta equipa de Viena ainda conquistou a Supertaça Europeia e a Taça Intercontinental. Ressoavam as palavras de José Maria Pedroto, fazendo coro com Jorge Nuno Pinto da Costa: “Um dia, ainda se há-de concretizar o nosso grito de revolta contra o domínio da capital. Porque é injustamente preparado, fora dos campos de futebol”. E estas: “Ainda nos hão-de perguntar, se o F.C.Porto já não se sente cansado de tantas vitórias”. E, num sorriso tranquilo, mas com o olhar faiscando, afirmou: “Não sei quando isso vai acontecer, mas vai acontecer, com toda a certeza”. Muito havia a escrever, sobre a história do F.C.Porto, desde a década de 70 do século passado, até hoje. Relembro, sobre o mais (sobre o muito mais), as vitórias internacionais de José Mourinho e de André Villas-Boas. Quando lecionava em Campinas (Brasil) várias vezes conversei com Carlos Alberto Silva. Cheguei a convidá-lo a almoçar comigo, na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Foi treinador vitorioso do F.C.Porto, pois reconquistou o título nacional, com dez pontos de vantagem sobre o Benfica. Termino, com ele, o meu artigo, de hoje: “O Porto tem a alma de uma cidade e de uma região. E um presidente que dá a vida por tudo em que acredita!”. No Brasil, o céu vermelho da tarde esbraseava-se como um incêndio…
Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto