Belenenses: cem anos de vida! (artigo de Manuel Sérgio, 308)

Espaço Universidade Belenenses: cem anos de vida! (artigo de Manuel Sérgio, 308)

ESPAÇO UNIVERSIDADE15.09.201918:41

Quando nasci, em Lisboa, na freguesia da Ajuda, no dia 20 de Abril de 1933, em madrugada tépida, com os prédios ainda a dormir sobre as ruas silenciosas (se bem interpreto as palavras da minha querida Mãe) já o Clube de Futebol “Os Belenenses contava quase 14 anos de vida.  Os meus pais, pobres transmontanos “exilados” em Lisboa, convictos católicos, apostólicos, romanos, nutriam também pelo Belenenses uma incontida simpatia, que se manifestava, por exemplo, nos domingos de tristeza resignada, quase repousante, em que o Belenenses perdia. Quando nasci, já o Belenenses era um jovem que empolgava pelos seus desempenhos, nomeadamente nos campos de futebol. Meu pai esboçava um sorriso vagaroso de felicidade, ao lembrar os nomes do Júlio Morais, do Alfredo Ramos, do João Belo, do José Luís, do Rodolfo Faroleiro, do Joaquim de Almeida, do Silva Marques, do Pepe, do Augusto Silva, do Carlos Rodrigues, do João Tomás, treinados por Artur José Pereira – que foram, todos eles, campeões de Lisboa e de Portugal, na época desportiva de 1928/29. De todos se distinguia, pela sua classe invulgar, o Pepe.  Era instintivamente jogador de futebol - que transparecia na formidável mocidade, na gaiatice,  como fintava e driblava e rematava. Faleceu de intoxicação alimentar, no dia 24 de Outubro de 1931. A propósito, a direção do Belenenses escreveu no seu relatório: “Durante a gerência que acaba de findar, sofreu o nosso clube o mais rude golpe de toda a sua existência, com a morte do glorioso internacional e olímpico, o nosso querido amigo e jogador, José Manuel Soares, mais conhecido por Pepe. O seu desaparecimento precoce abriu uma lacuna irreparável, não só no nosso clube, como na nação inteira, que perdeu um dos melhores atletas das suas embaixadas desportivas. Do estrangeiro recebemos também sentidas condolências, o que demonstra o apreço e a popularidade do nosso desventurado Pepe”. De salientar que este jogador marcou 7 golos, nas 12 vezes em que foi internacional.

No dia em que o Pepe faleceu, já o Belenenses completara 12 anos de existência. Com efeito, por força do sonho e da vontade de Artur José Pereira (1889-1943), um grupo de amigos, da Ajuda e de Belém, reuniram-se, numa tépida noite dos fins de Agosto de 1919, na Praça Afonso de Albuquerque, em Belém. Eram eles: o referido Artur José Pereira, acompanhado do seu irmão Francisco Pereira e ainda Henrique Costa, Carlos Sobral, Joaquim Dias, Júlio Teixeira Gomes, Manuel Veloso e Romualdo Bogalho. O Artur, com uma alegria incontida a estourar-lhe no rosto, manifestou-lhes o sonho que o animava: criar um clube de futebol, que representasse a zona ocidental de Lisboa. A ideia foi acolhida por todos com tamanha simpatia que em 23 de Setembro e 2 de Outubro do mesmo ano, duas sessões distintas da mesma Assembleia Geral, no “Belém Clube”, na Calçada da Ajuda, foi decidido por todos os presentes (76 pessoas) oficializar o nascimento do Clube de Futebol “Os Belenenses”. A ponto foi o interesse que acompanhou os primeiros dias de vida do Clube da Cruz de Cristo que não lhe faltaram atletas que o representassem na equipa de futebol, constituída com os jogadores seguintes: Mário Duarte, Joaquim Rio, Carlos Sobral, Francisco Pereira, Aníbal dos Santos, Manuel Veloso, Arnaldo Cruz, Alberto Rio, Edmundo Campos, Romualdo Bogalho e Artur José Pereira. “Em 19 de Junho de 1921, o Belenenses, comandado por Artur José Pereira, depois de eliminar o Vitória de Setúbal e o Carcavelinhos, venceu na final o Sporting Clube de Portugal e conquistou a valiosa Taça (das mais valiosas Taças até hoje disputadas em Portugal) “Mutilados da Guerra”. Este foi o primeiro troféu, ganho pelo Belenenses e que se encontra, em lugar de honra, na Sala da Direção do Clube” (Acácio Rosa, Factos, Nomes e Números do Clube de Futebol “Os Belenenses”, 2º. Volume, p. 20).

Sem menoscabo de tanta gente ilustre que, em 1919, imediatamente se colocou ao seu lado, aderindo às suas ideias, como o Dr. Virgílio Paula, o engenheiro Reis Gonçalves, o Júlio Teixeira Gomes, etc., etc., Artur José Pereira por todos foi (e é) considerado o fundador do Clube. Para além de um futebolista de excelência (o Cândido de Oliveira frequentemente aludia à sedução do seu futebol, de um excecional recorte técnico) realizou, no amanhecente futebol português daqueles anos já distantes, um tipo humano de superior dignidade, podendo apontar-se, hoje, sem receio, como um exemplo de inalterável elegância mental e moral. Deixou a prática do futebol, em 26 de Março de 1922 e, em Fevereiro de 1925, assumiu o cargo de treinador de futebol do Belenenses, o que mais o impôs como “figura de proa” do seu Clube, pois que, como líder da equipa, o Belenenses foi campeão de Lisboa, finalista do campeonato de Portugal e, no ano seguinte, campeão de Portugal. Homem modesto e honrado, não possuindo património, quando em 1937 adoeceu gravemente, foi Cândido de Oliveira o seu substituto – Cândido de Oliveira que, mensalmente, oferecia ao Artur o vencimento que recebia do Belenenses. Esta é uma das páginas mais belas que a História do Clube da Cruz de Cristo nos oferece! Quantas pessoas não ficaram devendo ao fundador do jornal A Bola a palavra que ilumina, o exemplo que orienta, o conselho que ampara, o perdão que redime!... Até à década de 70, o Belenenses foi campeão nacional uma vez, ganhou Taças de Portugal e tinha o suficiente prestígio internacional para merecer o convite do Real Madrid à inauguração do Estádio de Chamartin. É verdade: foi com um jogo Real Madrid-Belenenses que o principal clube da capital espanhola fez a festa da inauguração do seu estádio.

Nos primeiros anos da década de sessenta, na sede do Belenenses, que então se situava na Avenida da Liberdade, em Lisboa, assisti a uma conversa, entre o Dr. Vale Guimarães e o comodoro Eduardo Scarlatti, dois belenenses ilustres, que me deixou a pensar. Era uma tarde de inverno, o céu empalidecia rapidamente. Eduardo Scarlatti, rosto redondo, sem protuberâncias ósseas, do qual pendiam as orelhas diáfanas e cerúleas, disse, grave e pausadamente, ao Dr. Vale Guimarães, ao mesmo tempo que, de soslaio, olhava para mim com amistosa sobranceria: “O Belenenses não é suficientemente grande para aguentar o impacto tremendo do profissionalismo”. Eu, no recato da minha insignificância, repeli a ideia, mas hoje reconheço que o comodoro Scarlatti tinha razão. A repetição exaustiva, massacrante daquela afirmação doía-me (“o Belenenses não é suficientemente grande para aguentar o impacto do profissionalismo”). Mas, de facto, não foi, não é. E nós, belenenses, vivemos tanto do Passado e das “torres de Belém” e do Mariano Amaro e do Artur Quaresma e do Matateu e do Vicente e do Di Pace e do Fernando Peres e do Vítor Godinho que só seremos Futuro, quando o soubermos construir igual ao nosso glorioso Passado. Para existir, não basta ter História. Esta ciência, se bem me lembro o que aprendi na Faculdade de Letras, é o conhecimento sistemático do passado humano. Ora, respeitando-o embora, colhendo dele as necessárias lições, já basta da nossa “intranscendência cultural”, ou seja, de cultuar tão-só o Passado e mostrar uma doentia incapacidade de construir o Futuro. O Belenenses já foi grande e com pessoas de sentimento clubista igual ao nosso. Portanto, o Belenenses pode voltar a ser grande, quando quisermos.  Mas (reconheço) há uma saudade que dói do Belenenses da minha infância, da minha mocidade. E que eu sentia doer, no meu amigo-irmão, o jornalista Homero Serpa, sempre com a alma cândida, à flor dos olhos e da face.

Há cem anos, nasceu o Clube de Futebol “Os Belenenses” e aparentando prosperidade. juventude, desbordante alegria. Hoje, parece um idoso de temperamento bisonho e de incurável timidez, diante do desporto da sociedade produtivista e impiedosamente competitiva. Aguardemos uma sociedade diferente, capaz de gerar um desporto novo e um Belenenses como o sonharam Artur José Pereira e seus pares.

Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto