Alfredo Teixeira: - o diretor da “Cátedra Manuel Sérgio” (artigo de Manuel Sérgio, 337)

Espaço Universidade Alfredo Teixeira: - o diretor da “Cátedra Manuel Sérgio” (artigo de Manuel Sérgio, 337)

ESPAÇO UNIVERSIDADE02.05.202023:09

Os últimos dez anos têm sido afortunados, para mim. Da exiguidade dos meus méritos, do meu insignificante magistério crítico, não esperava tanto. Só a simpatia e a generosidade do Presidente da República Portuguesa, do Governo Português, das Câmaras Municipais de Lisboa e de Almada podem explicar o inexplicável. Mas, francamente, a criação da “Cátedra Manuel Sérgio”, na Universidade Católica Portuguesa (UCP) surpreendeu-me, sobre o mais. Quando, há um ano, aproximadamente, o Doutor José Tolentino Mendonça, vice-Reitor da UCP (hoje, Cardeal da Igreja Católica, Apostólica, Romana, a trabalhar junto do Papa Francisco), que eu já conhecia da doçura rilkeana da sua poesia e da sua prosa onde ressoa o Padre Manuel Bernardes – teve a bondade de convidar-me para um almoço, pensava eu que se tratava de um encontro de pura curiosidade, em relação a um velho de 86 anos de idade que nenhum cansaço ou desilusão o levam a desistir de estudar e de escrever. Afinal, no almoço em que participaram também o Doutor Alfredo Teixeira, da UCP,  e o Dr. José Lima, do IPDJ, o Doutor José Tolentino Mendonça indagou-me: “Depois de conhecer o seu currículo, de consultar alguns intelectuais e de já ter lido três livros da sua autoria, um deles a sua tese de doutoramento, decidimos o Professor Alfredo Teixeira e eu propor à Reitora da UCP a criação da Cátedra Manuel Sérgio”. E com um sorriso cordial e amplo acrescentou: “Concorda?”. Afinal, o almoço visava preludiar a minha relação (digo: filial) com a UCP que, ao criar uma Cátedra, com o meu nome, menos recebe do que dá. Estava diante de dois teólogos (poderia dizer três, pois que o José Lima também é licenciado em Teologia) não seria portanto de estranhar que se tornasse visível a “incomensurabilidade” dos paradigmas. Pelo contrário, tanto na postura especulativa como no sentido prático, os meus documentadíssimos companheiros de um almoço e eu encontrámos uma unidade superior donde se via mais alto e mais longe. “Tudo o que sobe converge” disse-o Teilhard de Chardin. E Jean Piaget refere uma noção de conhecimento, como processo. E até um novo “logos” parecia despontar daquele almoço…

E despontou, de facto, um novo “logos”, após um certo esforço sistematizador da reflexão teórica sobre o corpo vivido, o “corpo próprio”, pois que é o corpo, no movimento da transcendência o que, nesta Cátedra, em primeiro lugar se procura e se pesquisa e se estuda. Vida e movimento são inseparáveis. Mas há tanto mais vida quanto mais solidariedade ressaltar do movimento. Gramsci revela uma conceção singular de objetividade: “Objetivo significa sempre humanamente objetivo, o que pode corresponder exatamente a historicamente subjetivo, isto é, objetivo significaria universal subjetivo. O homem conhece objetivamente, na medida em que o conhecimento é real para todo o género humano, historicamente unificado num sistema cultural unitário” (Gramsci, Q 11 & 17, vol. II, pp. 1415-1416). Gramsci julgo não confundir objetivo com subjetivo mas, também na motricidade humana, “objetivo significa sempre humanamente objetivo”, visando as exigências individuais e as necessidades sociais de todos os praticantes. As ideias chegam-me num tropel desorganizado mas não posso deixar de registar, jogando com experiências inúmeras, a cordialidade, a erudição, a cultura do Doutor Alfredo Teixeira, atual diretor da Cátedra e um ensaísta ao nível (não exagero) do que de melhor se encontra, em língua portuguesa. Frei Bento Domingues, o feliz prefaciador do livro Não Sabemos Já Donde A Luz Mana (Paulinas, Lisboa, 2004) de que Alfredo Teixeira é autor, escreve: “Descobri em conversas, debates e nas obras publicadas de Alfredo Teixeira, um percurso intelectual fora do comum. Não só porque nela convergiam a investigação académica, no campo da Teologia, da Filosofia, da Antropologia e da Sociologia, mas sobretudo porque essas investigações não se mantinham estanques ou justapostas (…). Os resultados revelam um pensador informado,  original e fecundo”.

               

E tão informado, original e fecundo que encontrei, neste seu livro, uma afirmação bem pouco frequente: “Vale a pena recordar, antes do mais, que no século XIX e ainda durante a primeira metade do século XX, desporto e moral estabeleceram uma peculiar aliança. O privilégio concedido ao desporto pelo sistema pedagógico elitista das public schools inglesas, ou os vários registos de divulgação dos ideais de Pierre de Coubertin são exemplos eloquentes da anexação do desporto à moral, trajectória em que a performance desportiva é pensada coimo uma via moderna de musculação moral do indivíduo. Tratava-se não só de uma moral de elevação virtuosa, mas também de uma moral de regeneração social. A educação física ganhou lugar na construção da ideia de saúde nacional, como prática de disciplina do corpo, de regulação dos tempos livres, barreira à degenerescência dos costumes, escape para os impulsos sexuais e para a violência recalcada, numa ascese capaz de dar ao indivíduo o domínio de si próprio, expressão da melhor forma de integração social” (p. 145). Pierre de Coubertin, em discurso na Sorbonne (1907) quis dizer isto mesmo. Vejamos: “Le véritable héros olympique est à mes yeux l’adulte mâle individuel”, dado que, assim era voz corrente, a verdadeira moral resultava também das qualidades físicas. Entre os fatores de mundialização do desporto moderno, deverá salientar-se: o surgimento da “civilização dos lazeres”, o desenvolvimento das comunicações e dos transportes, da rádio, da televisão e da quarta revolução industrial (designadamente a tecnologia e a digitalização) e por fim o nascimento das ciências e da pedagogia do desporto. Não passo sem referir o que será uma experiência fascinante, para as gerações futuras e já o é, hoje, até para a solidão desamparada de muitos dos mais idosos: a quarta revolução industrial! Mas volto ao ensaísta Alfredo Teixeira: “As conhecidas festas e competições de Ginástica não eram puro entretenimento, pretendiam pregar uma pedagogia cívica e incrementar o culto da pátria e da república. Os Jogos Olímpicos surgiram, neste contexto, como ofício solene que celebra a civilização do respeito mútuo entre os povos, segundo uma moralidade que cultiva o gosto pela luta, o sentido do esforço, a solidariedade e a abnegação” (p. 145).

               

No dispersivo labirinto de inúmeros compromissos, científicos, universitários e artísticos (Alfredo Teixeira é um compositor musical de reconhecidos méritos)  e ainda o estilo de vida atual que, na pressa e na ansiedade, nos consome – espanta-me o rigoroso quadro de análise do autor de Não Sabemos Já Donde A Luz Mana: no contexto do espetáculo desportivo, facilmente nos deparamos com leituras que mobilizam significantes e/ou significados religiosos (…). Proliferam assim as metáforas religiosas: o espaço separado, o sacrifício, o milagre, a transgressão, a lectio matinal de jornais e revistas especializados, os relatos de feitos desportivos inigualáveis, os mártires, a iconografia devocional, os vendilhões do templo, etc.” (p. 146). Alfredo Teixeira é um ensaísta. E o que é o ensaio? Ele responde-nos noutro livro da sua autoria, Religião na Sociedade Portuguesa (Fundação Franscisco Manuel Dos Santos, Lisboa, 2019): “Ensaiar é experimentar, repetir como forma de treino, iniciar sem o imperativo de acabar” (p. 7). Aliás, também a realidade é aquilo que é e aquilo em que o real pode tornar-se. O ensaio imita a própria vida, onde não se destrinçam verdades apodíticas e dogmáticas, mas verdades incompletas e questionáveis. Por isso, como diz José Gil, pensar é revolucionário, pois que pensar apresenta-se, quase sempre, como uma “revolução permanente” contra a ordem estabelecida. Marc Augé descreve o futebol “como um grande ritual moderno que, medido por intervalos regulares e celebrado a horas fixas, congrega milhões de indivíduos junto do altar doméstico, a televisão” (Não Sabemos Já Donde A Luz Mana, op. cit., p. 147).  Alfredo Teixeira faz do futebol matéria prima inesgotável. Segundo Helena Mateus Jerónimo, “o rumo do progresso técnico e científico deve abrir-se, quer a modelos tecnológicos mais consonantes com a preservação do homem e do ambiente, assim como vigilantes nas suas consequências em termos de poder e justiça, quer a formas de enquadramento moral balizadas pelo bem comum” (Ética e Religião na Sociedade Tecnológica, Editorial Notícias, Lisboa, 2002, pp. 184/185).

               

Mas retomo a leitura do livro Não Sabemos Já Donde A Luz Mana: “Grande parte das interpretações sócio-antropológicas têm sublinhado quer a dimensão comunitária (procura de um suplemento de identidade) quer a dimensão emocional (a experiência das emoções), tendências que acabam por se encontrar na exploração das dimensões rituais do futebol (…). Seguem a mesma orientação as propostas que vêem no futebol uma encenação dos valores colectivos sacralizados (…). Bromberger (…) por seu lado, tinha posto em evidência que a adesão ao espetáculo futebolístico não mobiliza apenas a necessidade de sinalizar a pertença comum (tribal, local, regional, ou outra); essa adesão efectiva-se também por meio da simbolização de um modo específico de existência colectiva, que se encarna na competição entre equipas. Este processo é, na óptica do autor, essencialmente ritual, mas não religioso (…). A performance desportiva de alta competição é frequentemente vista como ritualização ou teatralização de um modo de civilização, a civilização tecnocrática. O desempenho dos corpos, sob a manipulação desportiva (…). Como a performance industrial dá corpo a uma vontade de dominação do mundo, assim o sintagma citius, altius, fortius, correspondendo ao ideal moderno de racionalização, enuncia uma vontade de expansão e afirmação do Eu mesmo sobre o mundo, uma ambição de agigantar a distância entre si e os outros, por meio de uma exploração metódica de determinados parâmetros (…). Tal como nas análises sócio-antropológicas anteriores, estas provocações filosóficas tomam o desporto como representação capaz de parodiar a realidade do vivido, modo de ver que remete de novo a prática desportiva para o domínio da ritualidade” (pp. 148/149). Da síntese que ousei fazer (de modo muito fragmentado e sincrético) de um ensaio de Alfredo Teixeira não quero só realçar, no meu estilo nervoso e correntio, um homem de estirpe intelectual e um acendrado defensor de grandes valores. Folgo também  pelo facto de a Cátedra Manuel Sérgio ser dirigida e superiormente orientada, pela dignidade universitária, pela rectidão de carácter, pela cultura invulgar, de Alfredo Teixeira. Sem esquecer quanto fiquei penhorado com a compreensão e a generosidade da Universidade Católica Portuguesa…

Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto