José Tolentino Mendonça: para uma nova episteme (artigo de Manuel Sérgio, 332)

Espaço Universidade José Tolentino Mendonça: para uma nova episteme (artigo de Manuel Sérgio, 332)

ESPAÇO UNIVERSIDADE29.03.202016:21

Lembram-se do prognóstico de Protágoras? “Nada existe / mas se algo existisse seria incognoscível / e se algo existisse e fosse cognoscível / resultaria incomunicável”. Como se vê, dificilmente o Protágoras poderia nomear-se patrono da “racionalidade comunicativa”. No Cardeal D. José Tolentino Mendonça, ao invés, sem qualquer rebuscamento lexical e numa escrita ágil,  percebe-se não só a filosofia e a teologia onde se fundamenta, como o objetivo último da sua prosa e da sua prosa poética (porque não deixa nunca de ser poeta, quando faz ensaio): desafia-nos “a um olhar que vá além de nós, que supere os limites do nosso tracejado, que transcenda o perímetro das nossas preocupações imediatas, que se projete para lá do que sozinhos conseguimos ver… porque a vida não se resolve apenas com aquilo que trazemos ou conseguimos, mas sim no diálogo misterioso entre a nossa escala e a escala mais ampla que a própria vida é” (José Tolentino Mendonça, revista do Expresso, 2020/3/21, p. 28). De facto, a vida, sem Deus, é um absurdo e, com Deus, é um mistério. Julgo mesmo que a cosmovisão de Teilhard de Chardin, “uma marcha em direção ao Espírito” (L’Avenir de l’Homme, Oeuvres, t. V, p. 70), ou seja, da cosmogénese à biogénese e da biogénese à noogénese (ou antropogénese) e da noogénese à cristogénese - informa a sua poesia e o seu magistério crítico. Sendo um dos grandes poetas e ensaístas e teólogos portugueses da hora presente, todos os seus escritos assentam numa conceção da literatura,  inseparável da transcendência. O ser humano é, para o José Tolentino Mendonça o termo onde desembocou a evolução do nosso planeta. Durante milhões de anos, a natureza preparou, modelou um ser portador de futuro e que se sente ligado e religado a conceitos, a valores, ao Absoluto. E é para este ser que o Cardeal Tolentino diz: “Nenhum ser humano nos é desconhecido, pois sabemos por nós próprios o que é um ser humano: o que é esse pulsar de medo e de desejo, essa mistura de escassez e de prodigalidade,. Esse mapa que cruza o pó da terra com o pó das estrelas” (revista do Expresso, op. cit., p. 26).

E, como identidade que se procura na alteridade, não há razão que não seja linguagem, nem linguagem que não seja razão. “Na verdade, o leitor não é apenas um produtor ou um consumidor, mas é um produto do próprio texto (…) Lemo-nos a nós próprios no livro que temos diante de nós (…). Uma coisa temos por certa: há histórias que são contadas para que um encontro aconteça” (José Tolentino Mendonça, A Construção de Jesus, Ed. Paulinas, Lisboa, 2004, p. 191). Toda a literatura deste autor supõe uma ontologia. Como aliás já acontecia com o Padre Manuel Antunes: “Desde há um século que o homem, profundamente dividido dentro de si mesmo, é levado por um enorme impulso criador a projectar fora de si as imagens que o habitam ou o obsessionam. Tudo tem sido tentado na arte e na poesia. Tudo parece esgotado. No entanto, algo resta. Precisamente o principal, precisamente o homem. Para nós, em concreto, este homem euro-ocidental. Este homem possuidor de uma herança que ele acha acaso demasiado pesada; este homem descobridor do tempo e construtor da história (…). De facto, ao longo dos séculos, muitas vezes ele substituiu, por pendor pecaminoso, o sentido da universalidade, mais antigo e mais autêntico, pelo sentido da hegemonia. Mas, reconhecendo isto, urge estar vigilante contra o clima de total demissão que esse sentimento ameaça criar” (Manuel Antunes, Do Espírito e do Tempo, Edições Ática, Lisboa, 1960, pp. 21/22). Leonardo Boff, um dos mais iluminados anunciadores  da teologia da libertação, escreve com a mestria que lhe é habitual: “A pós-modernidade – por seu relativismo total, por seu descompromisso professado, por seu desinteresse por uma humanidade melhor e por uma completa ausência de solidariedade pelo destino trágico da maioria da humanidade e, por fim, por sua falta de horizonte utópico – não aponta para uma superação da modernidade. Pelo contrário, ratifica e glorifica o seu lado patológico” ( A voz do arco-íris, Sextante, Rio de Janeiro, 2004, p. 21).

E depois das análises de duas vultuosas figuras do pensamento (misto de bom senso e de espírito crítico) em língua portuguesa, eis que surge José Tolentino Mendonça. Não fecha os olhos ao mundo vasto, injusto e vário que o rodeia: “Um relatório recente da Organização Mundial de Saúde (OMS) indica que três em cada dez pessoas não têm acesso a água potável, em casa. Isso perfaz uma impactante solidão calculada em torno aos 2,1 mil milhões de seres humanos. Se acompanharmos estes indicadores, percebemos que a sede é um gravíssimo problema que atropela a vida de tantos. Basta acrescentar que 844 milhões de pessoas não só não têm água em casa, como lhe falta, na vizinhança das suas habitações um serviço básico de água potável (…). Quem escuta a voz destas multidões sedentas? Saberemos onde está o nosso irmão? Na Encíclica Laudato Si o diagnóstico está claramente colocado às consciências contemporâneas”. E Tolentino Mendonça cita palavras do Papa Francisco, autor desta Encíclica: “Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável (José Tolrntino Mendonça, Elogio da Sede, Quetzal, Lisboa, 2018, pp. 138/139). O Cardeal D. José Tolentino Mendonça relembra ainda, neste mesmo livro e nesta mesma página, D. Helder Câmara, o inesquecível bispo de Olinda e Recife: “Se prestarmos ajuda assistencial aos pobres dirão que somos santos mas, se perguntarmos porque é que existem pobres, dirão que somos perigosos revolucionários”. Vem-me à memória a ideia de “mal”, em Teilhard de Chardin. Para ele, num mundo em evolução, a imperfeição, o erro, o pecado, o mal em suma, serão necessariamente inevitáveis. Um mundo em evolução e um mundo perfeito são conceitos contraditórios. É o próprio Teilhard a dizê-lo: “Não existe ordem em formação que, em todos os graus, não implique desordem” (artigo “Comment je vois”, 1948, p. 33). Nas Marges de Philosophie (Minuit, Paris, 2005), assinala Derrida: “tentar a saída e a desconstrução sem mudar de terreno, repetindo o implícito dos conceitos fundadores e da problemática original (…) arrisca-se a mergulhar no autismo da clausura” (p. 162).
 

Volto a Teilhard de Chardin: “Lá muito longe, um estado final se desenha em que, associados organicamente uns aos outros (melhor ainda do que as células de um mesmo cérebro) nós havemos de formar, todos unidos, um único sistema ultra-complexo e, por isso, ultra-centrado”” (L’Avenir de l’Homme, Oeuvres, t. V,  p. 118). Por seu turno, José Tolentino Mendonça esclarece: “Uma das esculturas mais conhecidas de Rodin revela, numa primeira abordagem, uma impressionante simplicidade. Trata-se de uma composição em pedra constituída por um par de mãos. Na verdade, duas mãos direitas, de duas pessoas diferentes cujos braços se entrecruzam e alongam para que os dedos, no ponto mais alto, se toquem, desenhando a forma de um arco”. Trata-se de uma escultura a quem Rodin deu o nome de “A Catedral”. E “A Catedral” porquê? José Tolentino Mendonça adianta: “Uma catedral também se alcança com as nossas mãos abertas, disponíveis e suplicantes, onde quer que nos encontremos. Porque onde está um ser humano, ferido de finitude e de infinito, está o eixo de uma catedral (…). Foi Pascal que escreveu que “as mãos sustêm a alma”. Hoje precisamos de mãos – mãos religiosas e laicas - que sustenham a alma do mundo. E que mostrem que a redescoberta do poder da esperança é a primeira oração global do século XXI” (revista do Expresso, op. cit., p. 29). Li, saboreei e meditei os principais livros da obra do Cardeal José Tolentino Mendonça e não tenho por isso receio em declarar que nasce, com ele, no século XXI, uma nova epistèmê (Foucault), que o mesmo é dizer: nasce com ele uma ordem específica do saber, onde a teologia radica no conhecimento científico e este vê na teologia o desenvolvimento e o termo de todo o saber. E não renasce com ele a “epistèmê” de Teilhard de Chardin? Que belo tema para uma tese de doutoramento…

Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto