Leiam poesia… (artigo de Manuel Sérgio, 331)

Espaço Universidade Leiam poesia… (artigo de Manuel Sérgio, 331)

ESPAÇO UNIVERSIDADE21.03.202019:38

Era o que eu, muitas vezes, dizia nas minhas aulas: “Não leiam, unicamente, sobre treino desportivo. Leiam também os grandes escritores, leiam também poesia”. O Desporto é vida e vida sem poesia perde um sentimento primordial, que nos ajuda a exprimir o que de mais belo e bom e puro existe, em cada um de nós. Trata-se de um conhecimento pré-racional, mítico, ou de uma experiência originária sem os contornos de um conhecimento? Trata-se, para mim, de uma categoria próxima do Sagrado. Com as suas imagens e os seus símbolos, a poesia diz-se, como quem diz uma oração. Leiam este poema de Sophia:

Porque

Porque os outros se mascaram  mas tu não

Porque os outros usam a virtude

 Para comprar o que não tem perdão

Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos caiados

Onde germina calada a podridão

Porque os outros se calam mas tu não

Porque os outros se compram e se vendem

E os seus gestos dão sempre dividendo

Porque os outros são hábeis mas tu não

Porque os outros vão à sombra dos abrigos

E tu vais de mãos dadas com os perigos

Porque os outros calculam mas tu não

Cabe perguntar: “Mas o que tem a ver esta poesia, com o Sagrado?”. Todo o sentido aparente, mesmo o sem sentido, da poesia tem um sentido secreto: o sentido da vida diante da transcendência, diante da nossa visão do Absoluto – onde há primazia da fé sobre o conhecimento científico. Assim o canta Miguel Torga:

Bucólica

A vida é feita de nadas

De grandes serras paradas

À espera de movimento

De searas onduladas

Pelo vento

De casas de moradia

Caídas e com sinais

De ninhos que outrora havia

Nos beirais

De poeira

De sombra de uma figueira

De ver esta maravilha:

Meu pai a erguer uma videira

Como uma mãe que faz a trança à filha.

Depois da leitura da Sophia e do Torga, escutemos a palavra de José Tolentino Mendonça, um poeta e um prosador de excecionais recursos: “Kierkegaard dizia: a angústia é a nossa doença mortal. A angústia é o veneno que nos corrói. A angústia é aquele medo que nos paralisa, aquela insegurança que nos deprime, que não nos deixa ser, que não permite que a nossa alma se expanda na sua paz, na sua originalidade. A angústia é a doença mortal. A alegria é a saúde da alma. Por isso, o provérbio diz: “um santo triste é um triste santo”. A alegria é um termómetro vital. E se andamos continuamente agastados, pesarosos, cheios de lamentações, a falar mais daquilo que nos pesa do que daquilo que nos extasia, então há uma revitalização interior que é preciso conseguir. Pois a alegria também se aprende” (Nenhum Caminho será Longo, Paulinas, Lisboa, 2015, p. 146). Mas deliciemo-nos com um poema de José Tolentino Mendonça (A Noite Abre Meus Olhos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p. 36:

Epitáfio para R.M.Rilke

Quando as palavras

Buscarem amparo

Em teu secreto canto

serás ainda

o único pastor

do meu silêncio

Minados pelo vírus da dúvida, já houve quem me perguntasse: mas, a ler poesia, sofre-se menos golos e marca-se mais golos? É que são os golos que, neste momento me interessam, não é a poesia”. Mas o que foram Pelé, Maradona, Rivelino, Eusébio e são, hoje, o Ronaldo e o Messi - senão poetas? Para mim, o fundo mais fundo do seu futebol foi, é poesia! Mas termino com Manuel Alegre, internacional de natação e um poeta de extraordinária criatividade, que ofereceu a Chalana este poema:

Chalana

Eis a página em branco

O gesto como palavra

Cada jogada uma aventura

Como poeta ele fará

O que menos se esperava

Escreve por todo o campo

Como o poeta procura

O poema que não há.   

PS.: Maravilhoso (é a palavra que me ocorre) o texto do Cardeal José Tolentino Mendonça, na revista do Expresso, de hoje (2020/3/20). Só um poeta de invulgares qualidades (poéticas e não só) podia escrever este texto. Nietzsche proclamou: “Deus morreu”. Mas em tudo o que faz e diz e escreve José Tolentino Mendonça encontra em Deus o seu Princípio-Esperança. Irrompe, neste sacerdote e escritor, a possibilidade de uma nova Episteme…

Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto