O tempo é intemporal (artigo de Manuel Sérgio, 305)

Espaço Universidade O tempo é intemporal (artigo de Manuel Sérgio, 305)

ESPAÇO UNIVERSIDADE18.08.201917:24

A frase não é minha, é de Péguy: “o tempo é ele mesmo intemporal”. Quando se chega à minha idade, este inciso rápido e sincopado parece-me cada dia mais verdadeiro. De facto, quando se chega à minha idade, é a verdade o que mais conta. Por isso, quando vejo um facto, procuro o valor (ou os valores) que o fez (ou o fizeram) nascer. Qualquer memorialista, ao relatar a sua vida, ou a vida do seu semelhante, distingue, antes do mais, as qualidades intelectuais, morais, físicas da figura central do seu livro, do seu artigo, do seu ensaio. Quero eu dizer: os factos só existem para esclarecer os valores. Se bem entendi a vida dos principais filósofos, todos eles eram pessoas de inegável honorabilidade e solidariedade. Muitos deles morreram mesmo na miséria, sem ambições políticas ou económicas.

Palermas…” dirão alguns habituados a baboseiras que se manifestam por poucas silabas. No entanto, quem não se impressiona com a perenidade de certos conceitos de certos filósofos, com a pujança especulativa do Kant, do Hegel, do Marx, do Nietzsche, do Heidegger, etc., etc.? Para além da ciência, há a filosofia e a teologia. E é precisamente na filosofia e na teologia que eu encontro os valores que dão sentido à vida, alguns “sub specie aeternitatis”. Um diálogo entre o futebol e os valores mostrou-o o Diego Simeone quando, ao analisar o trabalho do futebolista português João Félix, declarou: “O João tem muitas qualidades. Está adaptar-se, rapidamente, ao que a equipa exige dele. A sua visão do jogo permite-lhe adaptar-se, com admirável rendimento, a várias posições. Mas a sua qualidade primeira é a vontade de aprender. O talento é inato, mas a vontade de aprender é o caminho mais curto e mais seguro, para um jogador desenvolver o talento”. Que o jogador nasce e, pelo trabalho sério e honesto, desenvolve as suas aptidões para a prática do futebol – é um axioma que nos deixa cegos de tanta e tanta verdade! Um dia, na década de 60, assisti a um jogo de futebol de juvenis Belenenses-Benfica, na companhia do treinador Peres Bandeira, que Deus haja. Jogava, nos juvenis dos “azuis”, o Minervino Pietra, hoje treinador-adjunto do S.L.Benfica – jogava e com habilidade rara. Nunca mais esqueci o comentário do “mister” Peres Bandeira: ”Este, se quiser, vai ser um jogador de classe”. E o Pietra quis e foi internacional de futebol…
 

Portanto, se eliminarmos o supérfluo, o contingente, o acessório, serão sempre determinados valores a desenhar, em traço bem personalizado, o que faz o jogador, como profissional de futebol. Não é preciso apurar muito, nos desabafos, ou nas confidências, dos “agentes do futebol”, para concluirmos que não é, normalmente, o 4x3x3, ou o 4x4x2, ou o 4x2x3x1, o fator decisivo, nas vitórias, ou nas derrotas, é o ser humano que pratica futebol. Porque para mim o desporto (o futebol) nasce com o individualismo moderno, que é uma forma de antropocentrismo. O indivíduo que as teorias do Contrato Social realçam é um ser independente, autosuficiente, preocupado unicamente com a sua manutenção e conservação, liberto de tudo o que tradicionalmente constitui a vida do homem em sociedade: influência das pessoas, umas em relação às outras, pertença a redes de relações, subordinação a uma comunidade adotiva. E, numa sociedade de indivíduos, independentes de valores morais e absorvidos no imediato, a “guerra de todos contra todos”, de Hobbes, é servida naturalmente e sem olhar a meios. Tenho para mim que a ciência investiga e descreve os fenómenos e a filosofia e a teologia procuram o Absoluto que justifica os fenómenos. Quando afirmo que “o desporto reproduz e multiplica as taras da sociedade do rendimento, ou altamente competitiva” refiro-me ao conhecimento científico, às ciências sociais e humanas (ou hermenêutico-humanas), penso a autonomia do social e, no meu caso, defendo a contribuição do pensamento sistémico a uma ciência  hermenêutico-humana. Mas, quando apelo à necessidade de um desporto com ética, capaz de superar as tentações do consumismo que nos des-sensibiliza ao encontro com o Princípio e o Fim de todas as pessoas e de todas as coisas – eu adentro-me na Filosofia e na Teologia, cada qual com a sua resposta à pergunta: o que é o Homem? Nem o filósofo, nem o teólogo sustentam a posse da resposta absoluta.  Dizem-nos tão-só que há momentos na vida em que é preciso escolher entre o tudo e o nada. Quero eu dizer: em que “é preciso repensar o já pensado, para pensar o ainda não pensado” (Heidegger”) e acreditar no mistério de um Absoluto que não se sabe explicar, mas que é absolutamente necessário compreender.
   

“Por exemplo, o corpo dos bailarinos de certas coreografias modernas é constantemente percorrido por formas de vitalidade (abandonando as figuras do ballet clássico e do expressionismo). Que faz esse corpo? Junta heterogéneos, fazendo deslizar uns nos outros, ritmando intensidades diferentes, associando a brusquidão de uma interrupção com outra vinda de outras paragens. Combina assim formas de vitalidade, que se encontram abstractamente em cada elemento heterogéneo, um gesto extraído de Martha Graham liga-se com um fragmento de uma ópera de Verdi, os dois acentuando a força “em crescendo”. As formas de vitalidade contraem os conteúdos sensíveis, que põem em contacto. Quando uma ária de Mozart se conecta com a luz colorida que ilumina os corpos dos bailarinos, cria-se uma espécie de metáfora gestual que condensa, num grau de abstracção superior, o som da ária e a claridade dos corpos” (José Gil, trajectos filosóficos, relógio d’água, Lisboa, 2019, p. 92). Também o corpo abstrato do atleta de alto rendimento é o corpo de forças em movimento, pensadas pelo treinador, desejadas pelo atleta, sempre renascidas e nunca amadurecidas. Que digo eu? Digo que, nos infinitos gestos do corpo do atleta, há um todo abstrato e concreto que renasce sempre novo, não desde uma qualquer perspetiva alheada e neutra, porque ao serviço de uma grande vontade de vitória. E, quando o consciente falha, mobiliza-se o inconsciente, pois que o desporto, no seu mais alto nível, é uma transformação simbólica do mundo. No Benfica, segundo informação d’A Bola, de 7 de Agosto de 2019, começando em Luís Filipe Vieira, o responsável máximo pelo futebol encarnado, até à base, “são mais de  40 os elementos que integram a estrutura de apoio ao futebol profissional. Onde tudo funciona como num laboratório bem afinado” -  são mais de 40 os elementos que compõem o “staff” do futebol profissional, a estrutura material e humana da determinação de um pensamento primeiro. Na forma dialética da unidade matéria-espírito, o tempo é intemporal: há sempre mais do que moderníssimas instalações, no Benfica de hoje.
 

O conhecimento perfaz um longo itinerário. Necessita de muito estudo? Com toda a certeza. Mas, se me dão licença, eu leio um texto da página 30 da edição da Gallimard da Critique de la Raison Dialectique, de Sartre: “A única teoria do conhecimento, que pode ser válida, é aquela que se fundamenta sobre esta verdade da microfísica: o experimentador faz parte do sistema experimental. É a única que permite afastar toda a ilusão idealista, a única que mostra o homem real, no meio do mundo real. Mas este realismo implica necessariamente um ponto de partida reflexivo, quer dizer: a descoberta de uma situação faz-se na práxis que a altera”. Em poucas palavras: só se conhece o que se vive e se transforma. No ato cognoscitivo,  treinador-jogador-tática-estratégia-objetivos definem-se em termos de uma totalidade dialética e não como soma de vários conjuntos distintos. A transcendência, visando a superação, rumo ao Absoluto, para que se tende e nunca se alcança, reflete o movimento do real e mostra-nos as suas várias ordens (o material e o espiritual) e a articulação entre elas. De facto, somos matéria que se faz espírito, natureza que se faz cultura, carência que se faz desejo, razão que em fé se converte. Para transcender e transcender-me não basta a experiência mensurante da física, da matemática e, em certo sentido, da filosofia. Necessária é, sobre o mais, a experiência vivida, fonte da linguagem simbólica, quero eu dizer: do mito, da poesia, da arte, da religião e de boa parte do desporto. As palavras de São Paulo: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” ressoam na emoção  dos jogadores de futebol quando, após o golo, beijam o emblema do clube, na camisola. Quantas vezes eu senti emoção igual, após os golos fantásticos do Matateu, no Estádio do Restelo, numa loucura de azuis misturados de céu, de imaginação e de Tejo! Sem a experiência vivida, não há grandes jogadores (e treinadores) de futebol. Sem a experiência vivida que é símbolo e alegoria e metáfora e finalmente conceito, ou seja, ciência e filosofia e teologia – conceito que pode ser explicado e definido, na passagem do mythos ao logos, com os recursos da linguagem, sem apelos a vivências.
 

Nuno Delgado, extraordinário atleta, entre os maiores da história do desporto nacional, é também alguém que pensa como os que sabem pensar, tocou, em conversa comigo, na  (digamos assim) noção sintetizadora do meu conceito de motricidade humana: “o ser humano é movimento físico, porque é movimento intelectual e moral e é movimento intelectual e moral, porque é movimento físico. Mas não um movimento qualquer, o que o distingue é que o seu movimento físico, intelectual e moral resulta de uma necessidade permanente de transcendência”. O que se tem, o ´que se é volvem-se consciência dos limites. E é na consciência dos limites, na insatisfação diante do  relativo, do contingente, do parcial que eu encontro o sentido da vida: a transcendência. Na teoria da motricidade humana, como movimento em direção ao mais-ser, transcender é transcender-me, transcender é aproximar-me de um inalcançável Absoluto, que dá sentido e direção à própria vida. Portanto, a transcendência confirma o meu distanciamento em relação ao Absoluto, mas diz-nos qual o caminho a seguir. Frequentava eu a Faculdade de Letras de Lisboa, quando John Lennon cantava: “somos mais populares do que o próprio Cristo”. Ao substituir o amor cristão, nessa época de julgamento-rejeição-crise (que eu intensamente vivi) por uma espécie de sacralidade, baseada no amor profano e numa ou noutra ideologia política, a superação imobiliza-se, fica sem tino, olhos marrados no absurdo de uma vida humana que, na morte, não sabe produzir mais e melhor vida humana, mas o nada tão-só!. Esta é a ideia que mais me aproxima do cristianismo: a morte é também transcendência, a suprema transcendência em direção a uma forma de vida, que se desdobra interminavelmente em eternidade, em liberdade, em Amor e em tudo o mais que eu não sei ainda. Creio, mesmo, que a vida “post-mortem” não é um epifenómeno da matéria. Pelo contrário: como inteiramente espiritual, será a pré-história do Inefável, do Inexperimentável de uma vida melhor. E, aqui, se Deus tivesse morrido, como Nietzsche proclamava, com voz grossa de convencido, os ateus também não tinham nada de interessante, para nos dizer.
 

Estas “metafísicas” do tempo físico, material não são questões ultrapassadas, porque estão por resolver. Uma questão ultrapassa-se, quando se resolve. Por que há tanta gente a discutir a tática das equipas de futebol? Porque, para a tática, há respostas. E há problemas, no futebol, que até parece que não são do futebol. E, para estes, ou são difíceis as respostas, ou não há respostas mesmo. Como já trabalhei no futebol de altíssimo rendimento (embora 13 meses tão-só) e tenho sido Amigo de alguns treinadores de futebol, capazes de um diálogo vivo entre a razão e a fé, julgo poder acrescentar que a dimensão religiosa da alta competição desportiva manifesta que ao ser humano não lhe bastam o relativo, o parcial, o redutor. E que o Todo não o sabemos, nem podemos, dizer. Encontrei em Adorno, já não sei onde, que “é preciso tomar consciência da espécie de ignorância sobre a qual está constituído o nosso saber”. Martin Heidegger, como génio que é, sai assim da monotonia permanente de alguns críticos da arte: se quer saber de Van Gogh, ponha-se diante de um quadro de Van Gogh e escute o desvelamento da pintura do célebre pintor holandês (cfr. Martin Heidegger, A origem da obra de arte, Edições 70, Lisboa, 1990, pp. 12-27). Eu há muitos anos venho dizendo que… “quem não pratica não sabe”. A propósito, poderia escutar-se o Nietzsche da Origem da Tragédia: “Todo o homem que for dotado de espírito filosófico há-de ter o pressentimento de que, atrás da realidade em que existimos e vivemos, se esconde outra muito diferente e que, por consequência, a primeira não passa de uma aparição da segunda”.    
 

O repensamento e a revitalização da “cultura do clube” onde tudo se propõe, para que o atleta possa transcender e transcender-se, isto é, descubra (e pugne por) valores, no termo dos treinos e das competições, não pode limitar-se à convicção (teoria) tem de ser práxis, sobre o mais. E assentando sobre um pilar: tudo se faz e se pensa, solidariamente, desde o presidente ao menos cotado dos adeptos. A motricidade humana assim se define: é o movimento intencional e solidário da transcendência. E, portanto, na motricidade humana, palavras e ações, emoções positivas e emoções negativas, tudo se observa à luz de um valor supremo: a transcendência da complexidade humana. A ciência da motricidade humana (CMH) não contribui ao nascimento de um novo modelo cultural, mas pretende ajudar à criação de um clima, de uma atmosfera, de uma reciprocidade, de uma compreensão onde preparar um atleta passa pela sua mais completa humanização e preparar um homem, para a vida, passa pela sua mais completa educação corporal. O aspeto mais significante da CMH não se situa nas vitórias, ou nos recordes, ou em espetáculos artísticos inolvidáveis, mas na intencionalidade da promoção do humano, no desporto e no jogo desportivo e na dança e na ergonomia e na reabilitação e na motricidade infantil e na gestão de todos estes subsistemas do sistema “motricidade humana”. A CMH não ensina a durar, mas a viver; não ensina tanto a competir, mas a cooperar (por que não o neologismo: coopetir?); não ensina à primazia do dogmático, mas do crítico, nem do individual, mas do social. Na CMH, “o homem (e a mulher) de pensamento”  é necessariamente um “homem (e mulher) de ação” e um “homem (e mulher) de ação” é necessariamente um “homem (e mulher) de pensamento”. São três as experiências humanas básicas, em Hannah Arendt: a primeira é a do “animal laborans” (as experiências do trabalho);  a segunda encontra-se nas experiências do “homo faber”, ou seja, do artesão e do artista; a terceira significa as experiências da liberdade para participar democraticamente no espaço público da “polis”. Falta a quarta, no meu modesto entender: a transcendência.  É ela o núcleo essencial da mensagem que a teoria da motricidade humana nos pretende oferecer.

Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto