Políticas públicas, desporto e racismo: abordagem, paradoxos e riscos (António José Silva, 12)

Espaço Universidade Políticas públicas, desporto e racismo: abordagem, paradoxos e riscos (António José Silva, 12)

ESPAÇO UNIVERSIDADE02.03.202019:12

No limiar da terceira década do século XXI assistimos a um recrudescimento de manifestações de racismo, assim como de outras formas de discriminação promotoras de exclusão social na sociedade em geral. Exemplo disso foi o que sucedeu este fim de semana num jogo de futebol e o jogador Marega do F.C. Porto.

Este simples facto deve-nos alertar para o fenómeno, não o circunscrevendo a este episódio lamentável.

Estas formas de discriminação, sucedem num contexto social de globalização crescente, de pessoas, capitais e culturas, com desvanecimento das fronteiras (globais) tornando visíveis e evidentes determinados traços socioculturais que, por sua vez, promovem o ressurgimento de movimentos de reafirmação de identidades culturais, podendo conduzir a comportamento xenófobos e radicalismos que conduzem a discriminações.

A responsável das Nações Unidas para os direitos humanos, Navi Pillay, manifestou-se preocupada com o aumento do extremismo e do racismo retórico na Europa, avisando que a contestação à origem dos imigrantes pode conduzir ao abuso de direitos. Estes movimentos misturam uma ideologia neoliberal utilitária, que avalia os estrangeiros em termos de «utilidade» para a «nossa sociedade», com a construção de uma narrativa que atribui a pouca sorte ou à falta de êxito dos que se encontram no escalão mais baixo da escala social à sua diferença cultural e à sua falta de vontade de se «integrarem» na sociedade «ocidental» devido ao compromisso com os ideais religiosos ou culturais.

Sendo o desporto, as organizações desportivas e as pessoas que o integram (dirigentes, árbitros, treinadores, atletas, público), um microcosmo particular do contexto social mais abrangente, é natural que também se verifiquem estes fenómenos, nada justificáveis à luz de um quadro axiológico característico de sociedades desenvolvidas e num contexto específico que é o desporto, que deve ser encarado como um instrumento para promover a inclusão pelos valores éticos que promove. 

Não obstante, o desporto tem a virtualidade de ser capaz de identificar os anátemas de exclusão em determinados contextos (1), procurar corrigi-los (2); e de funcionar como agente catalisador de mudanças sociais, globais (3), pela promoção da inclusão, no estabelecimento da igualdade de oportunidades, e na prevenção e luta contra o racismo e a violência e qualquer outra forma de discriminação, através do papel das organizações desportivas na criação de redes sociais produtoras de capital social, tal como acontece noutro domínios sociais, como a família, a escola, a igreja, etc.

Estas redes permitem a aquisição de sentimentos de pertença, geradores de empoderamento e participação, com potencialidade de o capital social ser transformado em capital cultural e/ou económico, reforçando as capacidades pessoais e de desenvolvimento, quando bem orientada por princípios éticos (espírito de equipa, o autocontrolo emocional, a aceitação de regras comummente partilhadas, o empenho e determinação na prossecução de objetivos, o respeito pelo outro, e a amizade).

Possibilitam, ainda, a existência real de igualdade de oportunidades no acesso e no exercício de atividades dirigentes e técnicas, constituindo boas práticas a participação de pessoas sem qualquer tipo discriminação por motivos étnicos, religiosos, deficiência, género, orientação sexual, classe social ou outros.

Todos estaremos de acordo que muito se percorreu desde que Jesse Owens afirmou: “É verdade que Hitler não me cumprimentou, mas também nunca fui convidado para almoçar na Casa Branca.” Não obstante, ainda persistem fenómenos de racismo/xenofobismo/discriminação desmedido em diferentes países e desportos, que se estendem pela generalidade dos interlocutores no desporto.

Devem preocupar-nos os fundamentalismos bacocos que contrariam a tese central do rendimento desportivo, que é sempre o resultado e a consequência de algo, acima de tudo de uma estrutura multifatorial que engloba variáveis que o determinam: psicológicas; fisiológicas; genéticas (potencial); sociais; contextuais, etc.

A exclusão de atletas pela presença identificada de características específicas, de acordo com a estrutura do rendimento que a assiste, com vantagens competitivas evidentes, pode conduzir segregacionismos no desporto, à imagem da exclusão social existente e que se pretende combater.

A decisão recente do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) sobre a validade das regras de elegibilidade da Associação Internacional de Federações de Atletismo para atletas com diferenças de desenvolvimento sexual, contestada pela bicampeã olímpica Caster Semenya são um exemplo.

Com base neste pressuposto, atletas com condições anatomofisiológicas excecionais como Michael Phelps, ou Usain Bolt teriam de ser reclassificados pois seriam portadores de fatores de segregação por anomalias genéticas excecionais, por estes e/ou outros fatores étnicos!

Com base nestas evidências empíricas, os grupos étnicos deveriam ser, também, uma categoria de reclassificação pois são evidentes as excecionalidades atléticas de uns grupos relativamente a outros, assim como se verifica no género, enquanto identidade.

A vingar este argumento do TAD, é o ponto de partida para o estabelecimento de regras da prevalência irrestrita, na procura da salvaguarda da integridade das competições, onde prevalece o princípio de condições equitativas, que provocará a prazo a existência de tantas classes quantas as características prevalentes e condicionantes do resultado desportivo.

O desporto não pode ser ele próprio indutor de regras que possam favorecer as discriminações, em face ao critério da naturalidade do resultado, e que contrariam a sua própria natureza que se baseia numa estrutura complexa. A não ser assim, poderemos estar a assistir à criação de classes desportivas que sejam identitárias de uma natureza específica e mutuamente exclusiva: competições rácicas; competições religiosas; competições de género; competições naturais; competições artificiais, etc.

Neste âmbito, não será somente a divisão “natural” de provas/competições por género (masculino e feminino) e por idades/maturação (respeitando os níveis de desenvolvimento biopsicossocial), mas passaremos para a divisão e classificação por todos os que apresentam toda e qualquer vantagem competitiva resultante de fatores biológicos intrínsecos.

O desporto, não obstante a preocupação com a integridade não pode e não deve privilegiar a mediania do natural ao invés da excecionalidade do antinatural (potencial atlético), que não é o mesmo que o artificial (doping) e enveredar por intervenções artificiais, essas sim antinaturais e externas de normalização eugenista, com a segregação de potenciais atléticos que conferem vantagens competitivas visíveis.

Isso seria aliás contraditório com a própria natureza da evolução/seleção filogenética que confere vantagens competitivas na sobrevivência das espécies aos mais bem-adaptados em determinados ambientes e contextos reais.

É óbvio que uma nova etapa no quadro ético de valorização axiológica no desporto irá florescer. A “criação” natural, por manipulação genética de atletas cujos fenótipos sejam vencedores naturais mesmo que artificialmente escolhidos.

Talvez o futuro, não muito distante será esse. A pureza e a integridade da competição passar pela valorização da participação geral sem classes nem categorias, independentemente da raça, sexo, atributo, idade, género e/ou quaisquer características que possam indiciar vantagens competitivas, estilo OPEN e a existência de categorias com classes cujos critérios estejam dependentes dos valores normativos necessários para permitir que a aleatoriedade esteja dependente não das características potenciais do atleta, mas da naturalidade do seu processo de desenvolvimento, isto é do treino.

Mas aqui outra questão ética se equaciona. A do estímulo e a do mérito. (In)dependentemente do potencial atlético, o estímulo do treino é determinante para o resultado desportivo. Mas será ético:

1.        Em termos de integridade do resultado que diferentes procedimentos de treino (leia-se estímulos de treino) de diferente origem compagináveis dentro da legalidade, possam ser usados de tal forma que o mérito esteja dependente das condições proporcionadas?

2.        Que, para além dos já citados fatores ambientais de estímulo de treino, os fatores socioeconómicos sejam um forte agente segregador, comprovado pela participação de grupos étnicos em determinados desportos (natação e atletismo, por exemplo). À escala global os negros ainda estão, na sua maioria, em níveis de baixo rendimento e com uma certa dificuldade de acesso às aulas de natação/piscinas, tendendo a procurar desportos mais baratos, como o atletismo, para a sua prática.

Não. Nesta ótica, a única condição que proporcionaria a integridade dos resultados desportivos seria a competição sem treino!

Estes são os paradoxos que convém evitar, pois o absurdismo leva a fundamentalismos que vão inquinar o desporto e o seu quadro axiológico de referência. Medidas são urgentes, entre as quais:

Medidas educativas/informativas:

1.        Com ações de sensibilização para a população em geral, com a promoção dos valores axiológicos associados à prática desportiva em todas as etapas do processo de formação, usando as referências como exemplo;

2.        Com a obrigatoriedade de formação geral regular para renovação de cédula de treinador sobre temáticas associadas com o combate a fenómenos de exclusão social e discriminação no desporto;

3.        Com a obrigatoriedade de existência de formação dirigente regulada e tutelada, condicionadora da certificação legal das organizações desportivas, como condição necessária para a participação em competições oficiais;

4.        Com formação específica para atletas/treinadores/árbitros/dirigentes sobre comportamento de racismo e outras formas de discriminação e a forma de lidar;

5.        Com a divulgação de ações de exemplo com praticantes (referência nacionais e internacionais) junto de organizações antirracismo como a ECRI (european comission against racism and intolerance);

Medidas mais estruturais:

1.        A existência de um contexto global positivo com projetos integradores e de inclusão social para os mais desfavorecidos, e grupos de risco de discriminação potenciadora de exclusão social (sexismo; o racismo, xenofobia, as intolerâncias religiosas; homofobismo e transexismo), aproveitando os mecanismos de financiamento europeus existentes;

2.         A criação de projetos multidesportivos, com atletas de referência, em zonas de maior complexidade social, bairros multirraciais e/ou sociais para criar a necessária ligação entre o mundo real e o mundo imaginário que só possível ser visto pela TV;

3.        A existência de normas reguladoras do processo de certificação de clubes para participação em competições desportivas, nas quais a existência de dirigentes certificados sejam condição necessária para este processo.

Medidas repressivas:

1.        A existência de mecanismos fáceis e intuitivos de prevenção e denúncia de comportamentos inadequados, para todos os agentes desportivos, são determinantes para desencorajar a intolerância ou a discriminação e promover o que o desporto tem de bom: os seus valores!

2.        A existência de mecanismos regulares de punir com consequências desportivas atos de racismo e/ou discriminação, perpetrados objetiva e inequivocamente por dirigentes e/ou adeptos de clubes.

Duas notas finais.

1.        Não podemos, nem devemos banalizar os problemas de racismo e discriminações tratando por igual o que é diferente, e vice-versa, correndo o risco de assistirmos passivamente a um processo de consequências não antecipadas, como sucedeu com o conceito de racial colour blindness, cujo contramovimento provou que a desconsideração da “raça” na seleção de pessoas para a participação em atividades ou para a alocação de serviços era prejudicial às minorias em causa. A existência de quotas pode prejudicar a própria afirmação dos pressupostos que queremos afirmar.

2.        A criação de categorias de classificação desportiva em qualquer desporto, deveria estar subjacente a um critério de incapacidade que atesta uma dificuldade acrescida para a tarefa, não a critérios de potencialidade que excecionalizam os atletas: foi assim com as mulheres relativamente aos homens; deficientes relativamente a não deficientes; idades e graus de maturação; etc.

António José Silva é Prof. Catedrático Departamento Ciências Desporto, Exercício e Saúde da UTAD; Membro do Conselho Nacional Educação (CNE); Membro do Conselho Nacional do Desporto (CND); Presidente da Federação Portuguesa de Natação.